Onde as estradas são de água

Fonte: Revista Oncologia & Oncologistas – Ano 2 – Edição 07 – Jul/Set 2018
Foto: Pixabay

A realidade pouco conhecida da Oncologia Clínica em Manaus e como a nova geração está tentando modificá-la.

Pacientes que moram a sete dias de barco, chegam com tumores avançados e não raro desistem do tratamento. Este é o retrato do dia a dia do atendimento oncológico em Manaus. Mas os médicos de lá não desistem. Oferecem o que há disponível e têm se organizado para fazer mais. As medidas já adotadas são até simples. Constituir um local específico para a Oncologia, tornar-se um departamento exclusivo, ter uma secretária em tempo integral, uma equipe de enfermagem treinada, uma sala de reuniões. “Antes cada setor vinha funcionando de forma fragmentada com pouca comunicação entre as especialidades médicas; e na Oncologia não pode ser assim”, diz a Dra. Poliana Albuquerque Signorini, referindo-se ao aspecto multidisciplinar e multiprofssional da especialidade. Ela está entre os oito oncologistas clínicos da Fundação Centro de Controle em Oncologia (FCECON), o único serviço público do Amazonas a tratar pessoas com câncer.

Alguns dos oito são antigos de casa – mais de duas décadas trabalhando ali. Outros são jovens que ingressaram no hospital via concurso público em 2015. Juntos, atendem uma população de 2,5 milhões. Além do Estado inteiro, há pacientes do sul do Pará, Acre, Roraima e até mesmo venezuelanos e haitianos imigrantes. A carga de trabalho é desgastante: o setor realiza de 1,8 mil a 2 mil consultas médicas todo mês.

Nenhum dos jovens formou-se na especialidade em Manaus. Existe um Programa de Residência Médica em Oncologia Clínica ligado à FCECON, mas há três anos sequer tem candidatos. Poliana, por exemplo, é manauara, fez medicina na Universidade Federal do Amazonas, Clínica Médica na Fundação Hospital Adriano Jorge, também na capital, e Oncologia Clínica no Instituto Nacional de Câncer (INCA), no Rio de Janeiro. “Foram 11 anos de formação no SUS; decidi voltar e tentar retribuir para o meu povo o que eu aprendi”, conta.

A Dra. Gilmara Resende, também de Manaus, tem trajetória e motivação semelhantes, com a diferença de que fez a residência no Hospital de Câncer de Barretos, em São Paulo. “Optei por conhecer instituições mais bem estruturadas e avançadas, mas sempre tive vontade de retornar e mudar, para melhor, a realidade local”, afirma. “Até hoje ouço de colegas médicos que ‘o paciente fulano tem câncer avançado; vai morrer em poucos dias’. Eles são completamente incrédulos quando digo que tenho pacientes metastáticos com sobrevida de anos”, ressalta.

Muitas vezes a descrença dos pacientes também é enorme, conta a Dra. Poliana. As estradas são de água. As viagens de barco ou de lancha a jato precisam ser custeadas pelas prefeituras, o que nem sempre se consegue. As medicações contra o câncer disponíveis são basicamente as restritas ao SUS. As casas de apoio e ONGs ajudam quem não tem condições de se manter na cidade por conta própria durante o tratamento, mas as consultas, exames, sessões de quimioterapia e acompanhamento têm intervalos muito curtos entre si e, no total, é tempo demais para fcar longe de casa, na visão de boa parte deles. “Alguns pacientes me perguntam se a doença tem cura. Quando a resposta é não, por mais que expliquemos que vale a pena se tratar para ter Brasil Afora| 19 Pacientes levam até sete dias de barco para chegar ao serviço de oncologia; não raro desistem do tratamento mais qualidade e expectativa de vida, não raro há desistências”, revela a médica.

Diagnóstico tardio é quase regra. Amazonas é um dos Estados brasileiros campeões de casos de câncer de colo uterino, característica de locais com baixo acesso aos sistemas de saúde. “O início da atividade sexual é muito precoce; as pessoas não usam preservativo, não se vacinam contra o HPV”, descreve Poliana. “Quando surgem os sintomas, mulheres muito jovens enfrentam má triagem, mau diagnóstico e chegam ao oncologista com o tumor bem avançado. Aí vêm os outros gargalos, principalmente na radioterapia, como em todo o Brasil.” A ex-residente do INCA conta que o comprometimento dos oncologistas que atuam na FCECON há mais tempo fez com que o governo estadual passasse a financiar o custeio de alguns medicamentos contra o câncer. “Embora ainda não consigamos oferecer imunoterapia, estamos melhor que outros Estados, segundo relatos de colegas”, pontua. “Mas você se deparar diariamente com casos de tumor bem avançado, em uma doença prevenível, é muito triste”, continua Poliana. “Tenho alguns anticorpos monoclonais de alto custo, mas não consigo oferecer o diagnóstico precoce”, indignasse. “Investimos em droga, mas precisaríamos de tratamento precoce e maior chance de cura.