Na eleição: a família rachada, o choro de Deus

Um ex-petista, militante arrependido, caluniou nas redes sociais o filho de sua tia, apenas porque ambos votam em candidatos presidenciais diferentes. Não ousou aparecer, usou para isso o sobrinho que, sem querer, revelou a trama. Por que pessoas que se amavam tanto, que têm uma história comum, não podem discutir suas divergências em família, em volta da mesa, longe da privada? Por que não é possível conversar civilizadamente sobre os programas dos candidatos, o que cada um quer para o Brasil?  Só porque um dos candidatos foge ao debate, seus eleitores não são obrigados a segui-lo.

O traíra que muda de lado costuma ser ainda mais agressivo, porque quer provar aos novos cupinchas que renegou o passado. Veste camisa amarela, faz discurso na carreata e mesmo assim é vaiado. Por isso, precisa mostrar serviço para ser aceito. O pior inimigo do grão de milho não é a galinha, que quando fraca não pode atacar. O pior é o outro grão, que está no papo dela, que a está alimentando e lhe dando forças para assaltar todo o milharal. O primo caluniador é o grão de milho que já está no papo do candidato das trevas, a quem alimenta sem qualquer escrúpulo. Dane-se o afeto. Dane-se a razão. Dane-se a busca da verdade.

Por que tanto desamor, tanta agressividade, tanta baixaria? Como a sociedade brasileira, tradicionalmente cordial, acumulou tanto ódio?  As famílias estão rachadas. Já não interessa o que cada candidato está propondo para resolver os graves problemas do país na área de saúde, educação, segurança, emprego, direitos sociais. O que interessa é desqualificar o interlocutor dentro da família para não ouvir seus argumentos. A tia é fascista, o primo é ateu e comunista. E o Brasil, cadê o Brasil? As ofensas, na realidade, tem uma função: impedir que se discuta o país.

Debate não

É como se o médico do candidato das trevas estendesse sua recomendação a todos os brasileiros, aconselhando-nos a não participar de debates e de conversas familiares sobre os problemas nacionais, porque isso faz mal à saúde. Trocar ideias não! Nem pensar! Ideia é algo perigoso. A única coisa permitida é a ofensa pessoal esvaziada de qualquer reflexão, é enxovalhar a honra alheia. O exemplo da virulência e da mentira vem de cima. Do debate, pode surgir a verdade.

As exceções são poucas. Converso bastante com uma prima querida, ardente admiradora do Bolsonaro. Ela não é fascista, embora vote num racista, misógino, xenófobo, defensor da tortura. Temos opiniões diametralmente opostas, que milagrosamente não afetam o nosso afeto. As discussões às vezes são duras, mas sempre respeitosas. Numa postagem no face, ela contou a experiência de uma amiga para justificar a ausência nos debates do candidato das trevas:

– “O cara anda de bolsinha. Peida, faz cocô involuntariamente e fede. Tu te lembras da Suely? Ela teve câncer de intestino e usa bolsinha permanente. O som do peido é alto e o cheiro da merda que acompanha é horrível, ela fica tremendamente constrangida. Li o depoimento dos médicos do Bolsonaro, ele vai usar bolsinha durante pelo menos três meses, não pode passar por esse constrangimento. O Adélio enfiou a faca e girou. Outra coisa: o diafragma participa diretamente da fala. A pessoa tem que falar baixo o menos possível. Obs: não fiz biometria, por isso não posso votar”.

Como temos intimidade e zoamos um ao outro, respondi:

– “Três meses? Se ganhar, sobe a rampa do Palácio do Planalto soltando pum. Não precisa nem empunhar a metralhadora giratória que ele gosta tanto de exibir. Acontece que essa proibição médica é seletiva, exclusiva para a hora do confronto entre programas dos dois candidatos. No dia do debate na Band, os peidos não impediram a reunião dele, no Hotel Windsor, no Rio, com 380 deputados federais e estaduais eleitos pelo PSL e aliados. Participa de carreatas, dá entrevistas à televisão, faz reuniões, mas não pode confrontar seu programa com o do adversário. Ele só flatula nos debates? Tudo bem. Haddad quer debater, não se importa com o fedor das ideias alheias”.

Deus chora

Disse à minha prima que algo cheira mal no reino da Dinamarca, que a doença dele é outra. A Band propôs realizar o debate no Rio, residência do fujão. Fugir do debate é menosprezar o eleitor, achincalhar a democracia, não se submeter à crítica. Esse é o momento do confronto saudável de intenções e de planos. Afinal, o Brasil precisa ouvir o que cada candidato quer fazer com o país, mas um deles se recusa a expor seus projetos, com medo de ser ofuscado. Se o médico o interdita, para isso tem o vice. Se o general Mourão não pode substituí-lo agora, como fará depois caso seja eleito?

É que no debate a máscara de Bolsonaro pode cair. Ele finge que não faz parte do sistema de poder, ao qual serve há 28 anos com mandatos sucessivos por partido envolvido na corrupção. Elegeu filhos, ex-mulher e usa recursos públicos para pagar a cuidadora dos seus cachorros e receber imoralmente auxílio moradia. Votou contra os direitos das empregadas domésticas, dos fracos e desvalidos, acha que “mulher deve ganhar menos porque engravida”. No debate, isso ficaria esclarecido. Ele precisa nos dizer se efetivamente pretende cortar o 13º salário e outros direitos sociais e se vai mesmo armar a população. Até Deus chora quando ouve seu discurso.

Aliás, “Quando Deus chora” é um belíssimo artigo da pastora e teóloga da Igreja Luterana (IELCB) Lusmarina Campos Garcia, que está bombando na internet. Vale a pena reproduzir aqui alguns trechos:

“Uma das narrativas do evangelho retrata Jesus expressando um profundo lamento ao olhar para a cidade de Jerusalém e dizer: “Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados, quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, mas não o quisestes” (Mateus 13:31-35).

“A violência do povo de Jerusalém feriu o coração de Jesus. Ele ensinava a paz e a não violência. Uma vez Jesus disse aos seus discípulos e às suas discípulas: ‘Bem-aventurados os pacificadores porque dos tais é o Reino dos Céus’. E outra vez, quando os soldados vieram prendê-lo e Pedro tirou a espada e cortou a orelha de um soldado, Jesus o repreendeu e ordenou-lhe que guardasse a espada. Atos de violência não são admissíveis no seguimento a Jesus. Quem o segue, precisa optar pela paz”.

“Assim sendo, não é possível que as pessoas que se consideram cristãs, apoiem um projeto de governo e escolham um candidato à Presidência da República que propaga a violência indiscriminada e o armamento da população como método de segurança pública. Jesus nos convoca para a paz, não para a guerra; ele nos chama para o amor, não para o ódio. Achar engraçado que se pergunte a uma criança se ela já sabe atirar ou ensiná-la a fazer um gesto de disparo com as mãos, é destinar nossos filhos e filhas à degeneração psicológica compulsória”.

“Jesus foi torturado; morreu depois de ser exposto a um processo de tortura. A tortura é cruel. A tortura feita a Jesus e a qualquer outra pessoa não é justificável. Não há nada de engraçado nisso. O que há é muita desumanidade. Quem aplaude a tortura perpetrada contra qualquer pessoa torna-se um escarnecedor, seja na época de Cristo ou hoje. Todo tipo de violência fere o coração de Deus. Imagino que Deus esteja chorando ao olhar para o Brasil e ver que há filhas e filhos seus dando ouvidos a um propagador de atrocidades que, em seu nome, faz aquilo que Jesus jamais faria”.

P.S. E o primo do primo? Uma das características históricas do fascismo foi justamente estimular que filhos denunciassem pais considerados comunistas, jogando irmão contra irmão. Quem explica tudo é Rafael Azzi, filósofo carioca radicado em Ouro Preto, em artigo “Sua tia não é fascista, ela está sendo manipulada” – (https://jornalggn.com.br/noticia/sua-tia-nao-e-fascista-ela-esta-sendo-manipulada-por-rafael-azzi )