Império do punitivismo: “Com domínio do discurso de ódio, quem cumpre a lei virou progressista”

Do CONJUR, Por Sérgio Rodas:

Antigamente, ser progressista significava defender direitos e garantias além dos previstos no ordenamento jurídico e efetivados por decisões. Contudo, a hegemonia atual do discurso de ódio, que prega a punição a qualquer custo, faz com que aqueles que cumprem a lei sejam considerados de esquerda. Essa é a avaliação do juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Honório de Valois Coelho.

“O discurso de ódio que tem prevalecido tornou o cumprimento da lei irrelevante. As pessoas não estão mais preocupadas com o cumprimento da lei, desde que a pessoa seja punida, fique presa. As pessoas falam com orgulho que os presos têm que morrer. Esse discurso, um discurso pró-violação da lei, faz com que as pessoas que sejam legalistas aparentem ser progressistas, de esquerda. Cumprir a lei hoje em dia é perigoso”, afirma.

Ele sabe do que está falando. Notório defensor do direito de defesa e dos direitos humanos, Valois atraiu os holofotes da opinião pública por ter negociado com presos durante a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, que se iniciou no dia 1º de janeiro e terminou com a morte de 56 presos, muitos decapitados. Logo em seguida à revolta, contudo, jornais apontaram que ele era suspeito de ter ligações com a Família do Norte (FDN), facção responsável pelo massacre. A acusação, baseada em uma operação da Polícia Federal iniciada porque detentos mencionaram seu nome em uma conversa telefônica, rendeu-lhe ameaças de morte pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), rival da FDN, e a pecha de “defensor de bandidos” em setores da imprensa e das redes sociais.

Experiente na resolução de motins de detentos, ele credita a calma que mantém durante as tratativas aos anos de prática de judô e jiu-jitsu, que exigem um alto nível de concentração. Porém, nem sempre as negociações acabam bem. No dia 1º, Valois passou cerca de seis horas no Compaj, e conseguiu a libertação de três dos 10 reféns, além da promessa de que outros dois seriam soltos às 7h do dia 2. O juiz então foi para casa, e voltou no horário combinado. Mas quando entrou no presídio, viu que já não havia mais nada para se mediar. As galerias estavam apinhadas dos “restos da barbárie” — braços, pernas, corpos sem cabeça e corpos carbonizados.

Esse nível de brutalidade foi inédito até para ele, que já comandou um acordo com detentos em meio a 12 corpos e poças de sangue. “Mas [naquela ocasião] não tinha nenhum corpo como os que encontrei dessa vez, sem cabeça, sem braço. Isso eu nunca tinha visto”.

A rebelião de Manaus deu início a uma onda de assassinatos em penitenciárias que já contabiliza 103 vítimas em 2017. Para remediar essa situação, o presidente Michel Temer anunciou a construção de novos presídios. No entanto, o juiz do Amazonas opina que essas medidas são paliativas. A seu ver, a crise carcerária e a criminalidade só serão efetivamente resolvidas quando o uso e o comércio de drogas forem regulamentados. Com isso, as 174.216 pessoas condenadas por vender entorpecentes deixariam os presídios (28% dos 622.202 detentos do Brasil), as facções se enfraqueceriam sem o dinheiro ilegal vindo do tráfico e a polícia poderia se concentrar em prevenir crimes mais violentos, como roubo e homicídio, destaca Valois.

O juiz também critica aqueles que declaram que a operação “lava jato” está diminuindo as garantias dos acusados no Brasil. Segundo ele, o direito de defesa já está rebaixado há muito tempo. “O Direito Penal real não é o Direito Penal da ‘lava jato’. O Direito Penal real é muito mais violador do que o da ‘lava jato’.”

Em entrevista à ConJur, Valois ainda sustentou a ineficácia da prisão, declarou que o ensino jurídico ficou muito técnico e disse ser contra presídios administrados por entidades privadas.

Leia a entrevista:

ConJur — Como foi a sua atuação na negociação da rebelião com os presos em Manaus?
Luís Carlos Valois
— Eu estava em casa no dia 1º de janeiro, domingo, e várias pessoas já tinham me telefonado pedindo para ajudar na negociação com os presos, mas eu disse que não ia, que estava com o meu filho, e que era para chamar o juiz plantonista. Só que aí o próprio secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes, me ligou por volta das 22h, pedindo ajuda. Isso me deu o maior susto, porque ele nunca tinha me ligado na vida. Aí eu vi que o negócio era sério mesmo. Concordei e ele me pegou em casa, me deu um colete à prova de balas e fomos para o presídio. Lá, o coronel e o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seccional do Amazonas da Ordem dos Advogados do Brasil, Epitácio da Silva Almeida, estavam negociando com os presos pelo rádio, mas quando cheguei houve uma discussão com o pessoal da segurança pela possibilidade de encontrar pessoalmente o preso que estava comandando a negociação. Nessa hora, a situação ficou ainda mais tensa, porque os presos acertaram o braço de um policial com um tiro, aí começou uma correria, descobriram que havia presos em cima do muro. Depois disso, fomos encontrar dois presos que estavam comandando a negociação.

Quando eu cheguei para falar com o preso, eles estavam com dez reféns. Então eu disse “olha, eu estava em casa, no recesso judicial, não estava a fim de vir para cá. Então, em consideração ao fato de eu estar aqui, a única coisa que eu quero é que vocês liberem três reféns”. Falei isso já orientado pelo coronel. Eles responderam que antes iam consultar os outros presos. Daí eu disse: “Então falem, porque se não liberar eu vou embora para casa, não faz nem sentido eu estar aqui se vocês não demonstrarem interesse em dialogar”. Como os presos tinham feito um buraco no muro e passado para o semiaberto do complexo, eu acrescentei: “Outra coisa: não estou gostando de os presos passarem para o semiaberto; quero que todo mundo volte para o fechado, senão vocês vão prejudicar aqueles que estão terminando de cumprir suas penas”. Os detentos se juntaram aos demais, voltaram e nos entregaram um papelzinho com umas reivindicações, como a polícia não bater neles, manter a rotina do presídio, não ter transferência para a penitenciária federal e a tropa de choque não entrar. Ou seja, tudo consequência da rebelião, nada relacionado a protesto, a maus tratos. Eu peguei o papel, e disse que só ia olhar as propostas se soltassem os reféns. Aí o secretário de Segurança Pública, determinou, pelo rádio, que os presos que estavam no semiaberto voltassem para o fechado. Ele disse: “Voltem para o fechado. Quem fugiu, fugiu, quem não fugiu não foge mais”. Eles obedeceram e soltaram três reféns, como eu tinha pedido, e nós combinamos de nos encontrar de novo para falar das reivindicações deles. Às 4h, a gente se encontrou de novo, e eu disse que não tinha como impedir a tropa de choque de entrar, mas que era melhor que isso fosse feito logo, pois teria o acompanhamento da Comissão de Direitos Humanos da OAB e do secretário de Segurança Pública. Eu também disse que não poderia garantir que eles não seriam mandados para a penitenciária federal, pois estaria interferindo em processos que não são meus. Os presos entenderam, e disseram que iriam liberar mais dois reféns, mas só às 7h. Mas aí o secretário de Segurança Pública se irritou, e disse “olha, não vamos ficar aqui dando moral para os presos. Se eles não querem liberar agora, vamos embora. Quando eles quiserem, a gente volta”.

Fui para casa, e às 7h, um carro do grupo especial da Polícia Civil me levou de volta para o presídio. Quando eu entrei lá para recepcionar os reféns, vi os restos da barbárie: vários braços, pernas, corpos sem cabeça, corpos carbonizados. E olha que vários corpos já tinham sido retirados do presídio pelos próprios presos e pelo Instituto Médico Legal. Aí os reféns saíram, a tropa de choque entrou e eu fui embora para casa.

ConJur — O senhor já participou de outras negociações de rebeliões? Se sim, como elas foram?
Luís Carlos Valois
— Eu já participei de umas quatro. Antes dessa, a pior tinha sido em 2006. Morreram 12 presos, e eu fiquei negociando a rebelião em meio aos corpos e ao sangue. Mas não tinha nenhum corpo como os que encontrei dessa vez, sem cabeça, sem braço. Isso eu nunca tinha visto. Teve uma vez, em outra rebelião, que eu vi uma cabeça sendo chutada por um preso, mas foi de muito longe, não assim de perto como agora.

ConJur — O que o senhor tem a dizer das acusações da Polícia Federal de que teria ligações com a Família do Norte, pois foi citado em uma conversa entre integrantes da facção?
Luís Carlos Valois
— A Polícia Federal normalmente é formada por pessoas de fora do Amazonas que passaram em um concurso e vieram para cá. Quem me conhece sabe do meu trabalho, sabe que eu sou respeitado pelos presos porque faço um bom trabalho no sistema penitenciário. Mas a polícia está na guerra, no combate do dia a dia, então ela vê um juiz sendo elogiado por um preso, é natural que ache que o cara é suspeito, e até que o investigue. Mas é claro que foi um equívoco eles acharem que eu tinha ligação com a FDN. Eu não tenho conivência com facção e nem legitimo isso. Só trato todos os presos com respeito, como eles têm que ser tratados. Por isso eu tenho a consideração deles.

ConJur — O senhor acha que há uma certa perseguição a juízes mais garantistas ou defensores dos direitos humanos?
Luís Carlos Valois
— Sim, porque o discurso de ódio que tem prevalecido tornou o cumprimento da lei irrelevante. As pessoas não estão mais preocupadas com o cumprimento da lei, desde que a pessoa seja punida, fique presa. As pessoas falam com orgulho que os presos têm que morrer. Olhe as declarações depois dessa rebelião: gente comemorando mortes de seres humanos, estimulando, inclusive, a morte de mais presos. O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, disse que “tinha era que matar mais, tinha que fazer uma chacina por semana”. Como pode um negócio desses? Esse discurso, um discurso pró-violação da lei, faz com que as pessoas que sejam legalistas aparentem ser progressistas. Antigamente, o progressista era aquele cara que queria algo a mais que a lei, garantias a mais do que a lei previa, Justiça além da lei. Hoje em dia, quem cumpre a lei é progressista, parece que é de esquerda. E esse discurso de ódio também atinge o Judiciário. Cumprir a lei hoje em dia é perigoso.

ConJur — Como o senhor avalia as medidas anunciadas pelo governo para combater a crise carcerária, como a construção de novos presídios federais, repasses para criação de novas prisões estaduais e bloqueio de sinal de celular nas cadeias?
Luís Carlos Valois
— Tudo isso é paliativo. Há duas opções: construir mais presídios, e prender mais gente, ou prender menos gente. Para prender menos, vai deixar de prender quem? Os que praticaram pequenos furtos? O impacto vai ser muito pequeno, fora que o conceito do que é pequeno furto é muito subjetivo. Vai prender menos que praticaram roubo? A sociedade não vai aceitar. Então, o único caminho que eu vejo para diminuir o encarceramento em massa que há no Brasil é repensar a política de drogas. O mercado de drogas trata de relações comerciais voluntárias. A pessoa vai lá e compra a droga, não há violência. Com o uso e comércio de drogas regulamentados, sobra dinheiro para o Estado investir em saúde, educação, e na polícia, que poderia se concentrar em evitar crimes mais graves.

ConJur — E, aliás, nesse sentido, é legítimo e constitucional o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que vai prejudicar ela mesma?
Luís Carlos Valois
— Eu concordo com a [juíza aposentada] Maria Lúcia Karam: é inconstitucional proibir o uso de drogas. Em um Estado democrático, onde as liberdades pessoais estão acima de qualquer coisa, não deve ser considerada legítima essa proibição. Mas eu não digo só do uso. Se a gente só descriminalizar o uso, o que o usuário vai consumir? Droga suja? Droga misturada? As overdoses sempre ocorrem porque a pessoa não sabe o que está consumindo – seja porque a droga é misturada com outras substâncias e a pessoa não sabe, seja porque ela é pura, mas a pessoa acha que é misturada e usa mais. Nós vivemos em uma sociedade de livre mercado, onde a livre concorrência é estimulada, onde o lucro é estimulado, e aí criminalizamos uma relação comercial como a das drogas? Isso é um contrassenso.

ConJur — Aqueles que são contrários à regulamentação das drogas alegam que haveria uma explosão no uso de entorpecentes, aumentando consideravelmente os gastos com saúde pública. O senhor concorda com esse argumento?
Luís Carlos Valois
— Eu não sei quem são essas pessoas que estão doidas para fumar maconha, mas estão esperando ela ser legalizada para fazer isso. Eu não conheço ninguém assim. Não sei quem são os ingênuos.

ConJur — Que outras medidas poderiam ser tomadas para melhorar o sistema prisional a curto e a longo prazo?
Luís Carlos Valois
— É o que eu falei: ou constrói mais penitenciárias ou desencarcera. A curto prazo, o caminho é construir várias penitenciárias, não é? A longo prazo é repensar a política de drogas. E a longo, longo, longo prazo é, inclusive, extinguir a pena de prisão. Não acredito que daqui a 200, 300 anos, a gente ainda esteja punindo o ser humano com esse tipo de punição.

ConJur — A pena de prisão não funciona?
Luís Carlos Valois
— Não, não funciona. Você não vai ensinar uma pessoa a viver em liberdade enquanto ela está encarcerada. Ninguém aprende a nadar fora da piscina. Imagine uma aula audiovisual de natação – por mais que você assista a vídeos e palestras, na hora que entrar na água, vai morrer afogado.

ConJur — E que outras penas poderiam ser aplicadas em vez da prisão?
Luís Carlos Valois
— Temos um grande leque de penas alternativas, que inclui prestação de serviços à comunidade, limitação de fins de semana, monitoramento eletrônico… Se o monitoramento eletrônico evoluir tecnicamente, a pessoa poderá ficar presa em casa, sem a gente ficar pagando para reunir presos. Nas prisões, a gente paga para os criminosos se reunirem. Isso é muito irracional. Quanto menos pessoas presas, melhor para a sociedade. A prisão é criminógena.

ConJur — Que medidas poderiam ser tomadas para desarticular facções criminosas? Os presídios federais falharam nessa missão?
Luís Carlos Valois
— Tenho certeza disso — os presídios federais até estimularam o crescimento das facções. Aqui em Manaus, por exemplo, não existiam facções até criarem o presídio federal. O primeiro preso que foi para a penitenciária federal voltou com status elevado no meio carcerário, dizendo que ele era líder e tal, e aí esses grupos começaram a se organizar. Agora, acabar com isso é impossível, porque líder de pavilhão, líder de uma penitenciária específica, sempre existiu. Só que agora a gente permitiu que eles tivessem nome, passou a legitimá-los — só falta a gente registrar o Primeiro Comando da Capital no cartório. Se a imprensa está legitimando, se o Estado está legitimando a facção criminosa, está negociando com a facção, está chamando preso de líder, aí, sinceramente, pode começar a escrever sobre Direito Penal tudo de novo. E isso também passa pela regulamentação das drogas, porque as drogas que financiam essas organizações.

ConJur — O que o senhor pensa de presídios administrados por entidades privadas?
Luís Carlos Valois
— Por princípio, eu sou contra. O Estado não faz isso para o bem do preso, ele faz isso para o bem dele, para diminuir custos. E no Brasil, até viaduto é superfaturado e, por isso, muitas vezes acaba caindo. Mas se isso acontece com uma prisão, morrem 56 pessoas.

ConJur — É constitucional transferir a guarda de presos e a segurança de um presídio para a iniciativa privada?
Luís Carlos Valois
— Se o Supremo Tribunal Federal está permitindo isso, então deve ser… Eu acho que a parte médica, a parte social, a parte educacional poderiam ser terceirizadas. Mas não acho que seja constitucional transferir a parte de segurança.

ConJur — O sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crimes punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Luís Carlos Valois
— Com certeza há. Crimes de menor potencial ofensivo, como injúria, calúnia, difamação e porte de arma e delitos de trânsito poderiam ser resolvidos na delegacia. Mas o Judiciário ainda é muito preso a uma visão que considera a prisão como única forma de punição. O ensino jurídico é um ensino altamente técnico, fraco de Filosofia, Ciência Política, Psicologia… Ou seja, você forma um profissional em “Direito Técnico”. E por ser técnico, qualquer discurso ideológico encaixa nele. O técnico do Direito não consegue discernir que o discurso geral, o discurso de ódio, está tendo um efeito na sua conduta, no seu trabalho, então ele acaba sendo um técnico com ódio. Nós formamos profissionais sem capacidade de fazer reflexão sobre princípios do Direito, sobre a Filosofia do Direito, até sobre como aquele ódio está influenciando a sua prática jurídica. E muitos desses técnicos acabam ingressando na magistratura, e só veem a prisão como um mecanismo. Muitos juízes não conseguem perceber, por exemplo, que os seus réus são só negros e pobres; para eles, se é réu, se cometeu o crime, merece a prisão. Eles não conseguem perceber a desigualdade social nos próprios trabalhos deles, eles acham que estão fazendo uma atividade técnico-científica, e continuam prendendo gente. Então, o Judiciário é um obstáculo às penas alternativas.

ConJur — Então o Judiciário também é responsável pela superlotação do sistema penitenciário?
Luís Carlos Valois
— Com certeza absoluta. O Judiciário tem uma reserva de poder muito grande, e nunca está disposto a abrir mão dele. Por exemplo, não há necessidade de a execução penal ficar concentrada no Judiciário. Para um preso progredir para o regime semiaberto, ele precisa cumprir uma parcela da pena e ter bom comportamento. Quem atesta o bom comportamento é o diretor do presídio, e a progressão da pena qualquer um pode calcular. Então por que a própria administração penitenciária já não pode mandar esse preso para o semiaberto? Nesse cenário, seria possível até pensar na extinção das varas de execuções penais.

ConJur — A recente decisão do STF de permitir a execução da pena após condenação em segunda instância agrava o quadro carcerário?
Luís Carlos Valois
— Agrava, com certeza. Qualquer pessoa a mais agrava o sistema carcerário. Em uma cela onde cabem oito pessoas e há 30, se você colocar uma a mais, a situação vai piorar. Aquela pessoa extra pode fazer com que o pessoal daquela cela resolva matar outra dentro para ter espaço. Isso acontece no Brasil. É a ciranda da morte.

ConJur — Aumentar penas reduz a criminalidade?
Luís Carlos Valois
— Está mais do que comprovado que aumentar penas não reduz a criminalidade. Todos os livros de criminologia dizem isso. O criminoso não sai para cometer crime com uma calculadora: “Isso eu vou cometer porque dá, no máximo, dois anos; isso eu não vou cometer porque aumentou a pena na semana passada”. Quando a pessoa comete um crime, ela o faz achando que não vai ser pega, que não vai ser presa. O que estimula a criminalidade é a impunidade, não é o tamanho da pena. Se você acha que vai ser preso, se você tem certeza de que vai ser preso, a pena pode ser de 30 dias que você não comete o crime. Só que a criminalidade aumenta porque as pessoas começam a desacreditar no Estado. E nisso o aumento de penas, na verdade, é um estímulo à criminalidade, porque quanto mais você cria crimes e aumenta a pena, mais as pessoas que estão cometendo crimes têm a sensação de impunidade.

ConJur — E como diminuir essa impunidade?
Luís Carlos Valois
— Para diminuir a impunidade, precisa aumentar os investimentos na polícia, em investigação. Mas aí é o que eu disse: a guerra às drogas atrapalha, porque a polícia vai para a esquina, pega cinco, seis, com duas, três trouxinhas de droga, volta para a delegacia e não investiga roubo, não investiga homicídio.

ConJur — O senhor é favorável à redução da maioridade penal?
Luís Carlos Valois
— Claro que eu sou contra. Primeiro que o menor já é punido tão ou mais gravemente que o maior. Por exemplo, o Champinha [que assassinou o casal de adolescentes Felipe Caffé e Liana Friedenbach em 2003, na Grande São Paulo], se tivesse sido preso como adulto, já estava solto. Eu não sei que pena é essa que ele está cumprindo, porque na legislação de menores o princípio da legalidade parece que não é respeitado. Em segundo lugar, no Brasil não tem nenhuma separação entre os presos por idade. Ou seja, um jovem de 18 anos fica na cela com um de 30. E um jovem de 16, isso qualquer pessoa sabe, não tem a força física de um homem de 25, 30 anos. Assim, um jovem de 16 anos ou vai morrer, ou vai ter que servir de soldado ou vai ser violentado. Fora que aumentaria a população carcerária em 31% de um dia para o outro.

ConJur — Muitos profissionais do Direito avaliam que a operação “lava jato” vem ajudando a rebaixar o direito de defesa no Brasil, por usar métodos como prender preventivamente para forçar delações e abusar de conduções coercitivas. O que o senhor pensa dessa análise?
Luís Carlos Valois
— Tem muitas pessoas que ingressaram no Direito Penal com a “lava jato” e não conhecem a realidade dessa área. Por exemplo, a interceptação telefônica. Sabe como é a interceptação telefônica de pobre? O PM toma o telefone do pobre na rua, vasculha o celular dele, vê as mensagens dele. Se achar que tem alguma coisa, leva o suspeito para a delegacia e pronto, já era. Cansei de ver prisão em flagrante de pobre em que o policial inclusive narra na justificativa que olhou o celular da pessoa. Mas imagina olhar o celular de um empresário da “lava jato” — não vai, tem que ter mandado. Tem muita gente que ingressou no Direito Penal de ontem para hoje que não sabe o que é incomunicabilidade do preso — colocam um monte de pobres na cela da delegacia sem avisar as famílias. E quantos presos não são transferidos para um local em que a família não tem acesso, que não tem dinheiro para ir? O Direito Penal real não é o Direito Penal da “lava jato”. O Direito Penal real é muito mais violador do que o da “lava jato”.

Eu não quero dizer que há violações legais na “lava jato” porque é um caso em andamento e eu não posso me manifestar, mas se há violações na “lava jato”, elas podem servir de modelo para alguns juízes. Isso porque muitos juízes no Brasil admiram o Sergio Moro, admiram a sua atitude, a sua posição social como combatente da corrupção que foi colocada pela sociedade. Então, os juízes querem repetir esse modelo, querem ser iguais — “somos todos Moro”, não é? Esse padrão de juiz combatente é muito perigoso, porque o juiz não pode ser combatente de nada, — ou é juiz ou é Batman, não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo. O juiz tem que ser imparcial. Se você pesquisar na internet, vai ver que há estados em que foi criada a Vara de Combate ao Crime Organizado. Ora, uma vara não pode ser de combate a nada — vara é vara, é de Justiça. É uma deturpação da própria palavra Justiça. Então, o direito de defesa já está rebaixado há muito tempo.

ConJur — Nessa mesma linha, há muitos profissionais do Direito que afirmam que as 10 medidas para a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal são um sintoma do aumento do punitivismo no país, pois fortalecem os poderes da acusação e diminuem os da defesa. O que o senhor pensa disso?
Luís Carlos Valois
— Eu concordo plenamente. A começar pela legitimação da prova obtida por meios ilícitos. Olha que absurdo: claro que isso é para punir mais gente, para prender mais gente. Só que ninguém pode punir uma outra pessoa de forma injusta, de forma ilegal.

ConJur — As 10 medidas acabariam por punir os mais pobres em vez dos acusados de corrupção?
Luís Carlos Valois
— Com certeza poderia prejudicá-los, mas os pobres estão já tão prejudicados que não precisa de mais nada para puni-los. Na verdade, o que parece dessas medidas é que o Direito Penal está precário com relação aos pobres, e o MP procura precarizar com relação aos crimes que não consegue punir, porque não são de pobre.

 é repórter da revista Consultor Jurídico.