O PREFEITO ASHANINKA E SUA FLAUTA

Por Ribamar Bessa:

“A música nos faz voar. Entramos no som de nossos instrumentos e, através deles,

nos relacionamos com  pássaros,  peixes,  ervas, legumes, bebidas e outros seres”.

(Wewito Ashaninka)

O primeiro prefeito indígena eleito no Acre, o ashaninka Isaac da Silva Piyãko, de 44 anos, só tomou posse no dia 1º de janeiro de 2017 porque arrombou a porta do gabinete da Prefeitura do município de Marechal Thaumaturgo. É que seu antecessor fugiu com as chaves. Não sei se nessa hora, o novo prefeito lembrou uma aula que assistiu em fevereiro de 2003 no Curso de Formação de Professores Indígenas, quando garantiu que levaria consigo uma flauta, caso um dia migrasse para outro planeta. Parece que esse dia chegou.

O relato que aqui narro começou com um convite da Comissão Pro-Indio/Acre, para que eu ministrasse aulas aos professores indígenas de várias etnias. Lá, na sala de aula, contei para eles a história de Luísa, cujo pai, ao ser transferido para outra galáxia, no ano 3.000 d.C, avisou a mulher e a filha que devido à distância nunca mais poderiam voltar ao planeta terra. Por isso, recomendou que levassem na mala tudo aquilo que pudesse matar as saudades: objetos, cheiros, sabores, imagens, sons. Indaguei no final, por sugestão da autora desta história, a museóloga Blanca Dian:

– Caso os desterrados fossem vocês, o que cada um levaria na bagagem para não esquecer a aldeia?

Isaac respondeu que levaria sua flauta, pois guardou dentro dela todo o mundo Ashaninka. Quando criança, de madrugada, na hora em que o jacu batia a asa, seu tio o despertava lá na aldeia Apiwtxa, rio Amônia, afluente do Juruá, fronteira do Acre com o Peru. Os dois caminhavam no sereno, atravessando neblina tão densa que podia ser cortada a golpes de facão. O tio retirava talos de mamoeiro, fazia flautas tipo quena que juntos tocavam. Depois ensinou a flauta de pã (sõkari), a transversal (porero), o arco-de-boca (piyõpirẽtsi), os tambores (tãpo), os cantos e as festas rituais.

Orfeu Ashaninka

A flauta de Isaac passou a ser a morada de todos os sons inventados por Pitsitsiroyte, filho de Pawa – uma espécie de Orfeu Ashaninka – que nos tempos antigos revelou aos índios os segredos da música, dos rituais e das danças, tal como contam os velhos na versão transcrita por Wewito Piyãko, seu irmão. A flauta ashaninka pode ajudá-lo a governar o município de Marechal Thaumaturgo, outro planeta, distante quase 600 km de Rio Branco. Com ela, o prefeito eleito com 56.52% dos votos, talvez possa retirar as ratazanas que infestam o local, como fez o flautista de Hamelin.

Inteligente, íntegro, competente, esse professor indígena, ex-secretário do Meio Ambiente e um dos 15 conselheiros escolhidos em 2007 para compor o Conselho Curador de Fiscalização da nova rede pública de TV, é o único candidato em todo o Brasil que me faria votar em alguém que se apresenta pelo PMDB (vixe, vixe), mesmo tapando o nariz para a sigla. Enfrentou campanha sórdida e preconceituosa, mas acabou derrotando seu adversário, o próprio prefeito Aldemir Lopes (vixe) do PT, o fujão, que desapareceu sem transferir o cargo.

– A questão mais grave é a patrimonial. Encontramos carros abandonados, quebrados, com água dentro do tanque de combustível. Registramos a ocorrência na Delegacia de Cruzeiro do Sul e apresentamos um relatório ao Ministério Público do Acre, mostrando que houve movimentação ilegal das contas da Prefeitura até 2 de janeiro, quando Aldemir já não apitava mais nada – informou o novo prefeito no portal Juruaonline, manifestando que “se fizer um bom governo, eliminarei pelo menos parte dos preconceitos contra os índios”.

Prefeitos indígenas

Essa foi a primeira vez que o Tribunal Superior Eleitoral identificou as etnias dos candidatos, nas eleições de 2016, quando foram eleitos cinco prefeitos indígenas no Brasil: o Ashaninka Isaac, o Tariana Clovis Curubão (São Gabriel da Cachoeira-AM), o Xucuru Rossine Cordeiro (Lajedo-PE), a Potiguara Eliselma Oliveira Lili (Marcação-PB), o Pankararu José Gerson (Tacaratu-PE) e um vice-prefeito, o Munduruku Hans Kabá (Jacareacanga-PA). Já é possível até criar uma Associação Independente de Prefeitos Indígenas (AIPIN) com sugestiva sigla.

– Um índio governar um município habitado por muitos não indígenas é uma alegria e um privilégio – disse Isaac, resumindo o sentimento de seus colegas que estão conscientes de que se não realizarem boa administração, o preconceito aumentará. Os prefeitos contarão com o apoio de vereadores indígenas entre os 167 índios eleitos para câmaras municipais em todo o país.

A língua usada na Prefeitura, no caso do Acre, é o português, mas Isaac é bilíngue, fala uma língua Aruak, como muitos dos 1.645 Ahasninka no Brasil ou os 97.477 do Peru, competentes também em espanhol. Nos dois países, resistiram à invasão de seu território por seringalistas e madeireiros que causaram danos ambientais. Por isso, desde 2015, o território é monitorado com tecnologia digital, graças ao treinamento da University College London.

Nascido em 1972, numa região de maior biodiversidade do planeta, Isaac acumulou experiência que lhe pode ser útil na administração do município. Além dos cursos de professores, a Associação Ashaninka do Rio Amônia organizou, com apoio do BNDES/Fundo Amazônia, vários módulos do Curso de Formação Continuada em Gestão, que formou especialistas com conhecimentos técnicos e teóricos para elaborar e executar projetos, entre eles a produção de artesanato comercializado com lojas de São Paulo.

É com essa experiência e com todos os conhecimentos contidos em sua flauta que o novo prefeito vai administrar o município. Que ele possa continuar trajando sua elegante veste tradicional – a kushma – uma túnica de algodão, de cor marron e o amatherentsi – o chapéu de palha enfeitado com penas de arara, além do txoshiki – colar de sementes que dá várias voltas. Que Pawa, o pai de todas as criaturas do universo, o ilumine.

P.S. 1 – Wewito Piyankó: “Registro artístico de musicalidades do ritual Piyarẽtsi do povo Ashenĩka do rio Amônia” (Osãkinataãtsi õyawõtero ouẽkithare omãpãtsi ashi kemoshiretaãtsi  piyarẽtsipayteki ashi Ashenĩka amoyasatsi). Cruzeiro do Sul. 2013. Trabalho de conclusão de curso na área de Linguagem e Artes da Universidade Federal do Acre – Campus Floresta, sob orientação do MSc. Amilton Pelegrino de Mattos.O registro das canções e festas continua com a parceria do antropólogo Izomar Lacerda.

P.S. 2 – O Curso de Formação Inicial realizado em 2002 e o III Curso de Formação de Professores Indígenas (Formação Continuada) em fevereiro de 2003, ambos no Acre, contaram com participação dos seguintes formadores;  Nietta Monte, Teca Maher, Marilda Cavalcanti, José R. Bessa, Jairo Lima, Aldir Santos, Kleber Gesteira, Regina Araújo, Vera Olinda e Gleyson Araújo Os alunos do III Curso foram – Ashaninka: Isaac Piyãko, Komãyari,Valdete Wewito Piyãko; Arara: Antônio Lima; Kaxinawá: Adalberto, Edson Medeiros, Norberto Sales, José Mateus, Isaías Sales, Joaquim Paulo de Lima, Josimar Samuel, Manoel Sabóia, Rufino Sales, Aldenor Rodrigues, Valdir Ferreira; Yawanawá: Fernando Luiz, Aldaizo Luiz Vinnya; Katukina: Benjamin André Francisco Carneiro; Manchineri: Jaime Lhulhu e Jaminawa: Júlio Raimundo. Do Curso de Formação Inicial participaram –  Arara: Francisca Oliveira Lima, Edilson Pereira; Kaxinawá: José Paulo Alfredo, Fernando Henrique, Francisco Célio, Tadeu Matheus, Francisco das Chagas, Virgulino Sales; Ashaninka Francisco Petxanka; Yawanawá – João Inácio, Alderina Pequena, Raimundinha Luiza, Leda Matilde; Manchineri: Manuel Monteiro, João Sebastião, Lucas Artur.