SE EU FOSSE IRACEMA

Por Ribamar Bessa:

 “A história do homem branco é história  / A história de qualquer outro homem

é folclore / É caso /é mentira / é bobagem / é superstição / é lenda /  é enredo

 de escola de samba / é poesia de livro didático”. (Fernando Marques ).

 Nesses tempos bicudos com sérios riscos de trumperização do mundo, de temerização do Brasil, de crivellização do Rio de Janeiro e de marmelomerendização de Manaus, é saudável se refugiar no terreno da beleza e da inteligência com a esperança de lá retirar forças para combater o bom combate. Foi o que fiz no domingo, no Teatro da UFF, onde a atriz Adassa Martins apresentou “Se eu fosse Iracema”, um monólogo criado por dois capixabas – o dramaturgo Fernando Marques e o diretor Fernando Nicolau.

Tudo começou em 2012 quando Fernando Nicolau leu a carta dos Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, na qual anunciavam planejar um suicídio coletivo como resposta à expulsão de suas terras tradicionais determinada pelo juiz Sérgio Bonacheia. O fato, que repercutiu internacionalmente, ganhou as redes sociais – “Somos todos Kaiowá”. Solidários, os dois Fernando pesquisaram durante quatro anos a resistência histórica dos índios para criar a peça que estreou em abril de 2016 no Sesc Tijuca e depois ficou em cartaz no Espaço Sérgio Porto.

Durante 60 minutos, o público participa do espetáculo de qualidade, que aborda esse lado obscuro e camuflado da história do Brasil. A peça recolhe documentos, relatos e entrevistas, desde o diálogo de Jean de Léry com um velho tupinambá, no séc. XVI, no qual o índio expõe sua teoria do valor na relação com a mãe-terra, até discursos como os de Paulinho Payakã e Davi Yanomami no séc. XXI.

Diante dos nossos olhos desfilam o pataxó Galdino queimado vivo em Brasília, o bebé kaingang de dois anos degolado recentemente diante da própria mãe, em Imbituba (SC), o líder Marcos Veron e tantos outros que foram recentemente assassinados, quase sempre na luta pela terra. Mas é possível também encontrar trechos de reflexões de Manuela Carneiro da Cunha, Betty Mindlin, Bruce Albert, Darci Ribeiro e de outros estudiosos comprometidos com o destino dos índios, com a luta pela terra, pela cultura, pela língua.

A interlíngua

O cenário é discreto e contido: no centro do palco, um tronco de árvore cortado na base, coberto com uma lâmina de vidro, numa referência à interação de mundo urbano com a floresta. É sobre ele, como se fosse o caule da árvore, que Adassa Martins inicia e termina o espetáculo, vestida com uma saia comprida de látex. O pajé, personagem inspirado no cacique Raoni, fala em guarani, num discurso traduzido pelo cineasta indígena Alberto Alvares Tupã Ray. Em torno do tronco, ora pedestal, ora assento, se desenvolve toda a peça.

O monólogo é sustentado pela versatilidade da atriz que se transfigura ao representar diferentes personagens. O capítulo da Constituição de 1988 sobre os índios é recitado por uma personagem bêbada, seguida da performance da miss moto-serra Kátia Abreu, representante do agronegócio e seu séquito de madeireiros e garimpeiros. Com ironia sutil, uma palestrante dá um tom “imparcial” ao discurso que busca a cumplicidade com o público ao defender o desmatamento “sustentável” sob a justificativa de que “todo mundo quer ficar rico”.

A tentativa de diálogo entre índios e a chamada sociedade nacional envolvente surge aqui e ali, na luta contra o preconceito e em defesa da diversidade. A voz de uma velha índia sábia se faz ouvir em narrativas míticas sobre a origem do mundo e sobre os rituais de passagem, focando sobre a infância e a adolescência, assim como as vozes de mulheres indígenas após os massacres. Nesses momentos, a atriz cresce, falando uma interlíngua – o português fortemente marcado por línguas indígenas, tratado aqui com muito respeito e criatividade, sem qualquer folclorização, resultado de muita pesquisa:

– “Ouvi os pajés e diversos índios falando em documentários e percebi os fonemas mais presentes. A ideia é criar uma fusão do português com uma língua indígena”, comentou a atriz em entrevista, que teve para isso a orientação de  Ilessi, responsável pela preparação vocal. Ela explora todos os recursos da voz para caracterizar os diferentes personagens, com um timbre ora agudo, ora gutural, como na cena em que  uma mãe indígena amamenta um bebé.

Linguagem teatral

Apoiado pela equipe que envolve técnicos em iluminação, cenografia, figurinos, o trio que dá vida ao espetáculo circulou por festivais de teatro e acumulou experiências. Adassa Martins, formada em Artes Visuais com várias atuações no teatro e na televisão, entre as quais participação na minissérie Amazônia e em algumas telenovelas; Fernando Nicolau,  formado como ator pela Casa das Artes de Laranjeiras (RJ) e Fernando Marques, dramaturgo, diretor e ator. Uma das frases no final da apresentação enfatiza a relação dos índios com a sociedade brasileira:

Talvez repouse no índio, em sua relação com a terra e  com os seus, a real possibilidade de diferença em contraste com um modo de vida que se tornou hegemônico, ditado pelo capital, entre barragens, minério, eucaliptos, soja e gado. Face ao outro – ou àquele que insistimos em não reconhecer como nós – somos capazes de qualquer outra coisa que não destruir?

“Se eu fosse Iracema” é uma peça de denúncia da violência, mas não cai na armadilha da “crônica do genocídio”, que vitimiza os índios e retira deles o papel de sujeitos da história, de atores que resistem, fazem alianças e lutam. É um teatro político, mas não panfletário, consciente da necessidade de criar uma linguagem teatral refinada. Se fosse possível encená-lo em todas as escolas, o Brasil seria um país mais bonito, generoso e solidário. Não foi por acaso que Adassa Martins foi indicada ao Prêmio Shell de Melhor Atriz por sua atuação na peça dos dois Fernandos.

P.S. Mais uma doutora indígena na praça. Nesta sexta (21), a wapixana Zineide Sarmento Pereira defendeu tese intitulada “Atores Indígenas no debate da Raposa Serra do Sol” orientada por Maria Paula Nascimento Araújo do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Foi aprovada pela banca presidida pela orientadora e composta por Marieta de Moraes Ferreira (UFRJ), Alessandra Carvalho (UFRJ), Maria Luiza Fernandes (UFRR) e José R. Bessa (UNIRIO-UERJ).