A BERMUDA DO RAFA E A COLONIALIDADE

Por Ribamar Bessa:

Supunhetemos que em 1914, no Amazonas, um aluno de Direito da Universidade Livre de Manáos tenha sido congelado vivo para ser reanimado cem anos depois. Raphael – esse é o seu nome – desperta agora, em 2014, vestindo o paletó e a gravata com o qual foi criogenizado. Constata, estupefato, que em um século muita coisa mudou: o mundo, o Brasil, Manaus, as leis e até o curso, inclusive a farmácia que perdeu o “ph”. No entanto, uma coisa permaneceu congelada: a farda, digo a pharda. Seus colegas hoje estão vestidos como há cem anos: de paletó e gravata.

Nesses cem anos inventaram rádio, televisão, internet, celular. Duas guerras mundiais abalaram o planeta. Criaram a ONU, a UNESCO e a minissaia. Terremotos, furacões, ciclones, vulcões, maremotos e tsunamis abalaram o mundo. Calamidades atingiram o Amazonas que sofreu enchentes, amazoninos e dudus. Nesse período, o Brasil teve cinco constituições, a Universidade de Manáos foi extinta e a Faculdade de Direito, incorporada pela Universidade Federal do Amazonas, mudou da Praça dos Remédios para o Campus Universitário. Tudo mudou?
Tudo mudou, menos o traje. Desde 1910 os alunos de Direito do Amazonas são obrigados a usar paletó como uniforme de escola primária, isso num sol de fritar ovo na calçada, com uma umidade relativa do ar beirando os 90% e uma sensação térmica infernal de forno de micro-ondas. O terno, usado na Europa, onde o clima é outro, acabou sendo uma imposição absurda num país como o nosso. O paletó, que é antiecológico e a gravata, que nos enforca, só servem para diferenciar “você sabe com quem está falando”?
Decote acentuado
Depois de muita luta estudantil contra tamanho absurdo, a Resolução da Faculdade de Direito 001/2012, embora nada fale do terno, acabou referendando por exclusão o paletó, quando em seu artigos 3° e 6° inciso I, proíbe o aluno de “comparecer às aulas trajando vestimentas inadequadas ao ambiente escolar (bermuda, camiseta, sandália estilo havaiana, shorts, decote acentuado)”.
“Decote acentuado” é ótimo! Realmente é não ter o que fazer. A Resolução, guardiã da moralidade, não explicita o grau de “acentuamento”. Quem determina o tamanho aceitável do decote? Alunas de antropologia, ciências sociais, jornalismo, letras, história e até de química e de farmácia são livres para mostrar ou esconder o que é bonito. As estudantes de direito não. Estão proibidas de mostrar. A Resolução não teve peito para estabelecer, como no Sudão, quantas chibatadas devem ser aplicadas nas alunas que transgredirem a norma.
A Faculdade de Direito ainda acha que o hábito faz o monge, que a toga, a beca e a capa, como num passe de mágica, conferem autoridade e saber a quem as usa. Por isso, em 2001, em pleno mês de julho, quando o sol cozinha os miolos amazônicos, o diretor proibiu a entrada na Faculdade de um estudante de direito, Rafael Cyrino (sem o ph de pharmácia), que estava vestido corretamente para o calor amazônico: tênis, camisa de meia e bermuda. Ele protestou e endossamos seu protesto (ver Taquiprati, A Bermuda do Rafa, 15/07/2001).
Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio, nos ensina Heráclito, para ilustrar a lei da dialética que anuncia que o movimento é universal, que tudo muda. Tudo muda? Será? Agora, outro Rafael (também sem “ph”) – Rafael Frank Benzecry – presidente do Centro Acadêmico de Direito da UFAM, decidiu se opor à norma que proíbe os alunos de direito de se vestiram de forma cultural e ecologicamente correta. No último 6 de novembro organizou um plebiscito para consultar seus colegas. Continua a luta do Rafa a favor da bermuda.
Abaixo o paletó
O resultado do plebiscito foi a favor da liberdade individual de se vestir como se achar mais conveniente. Quem quiser sofrer com paletó e gravata, que o faça, mas os que não concordam, que possam usar outros trajes. Dos votantes, 165 se pronunciaram pela revogação da famigerada Resolução. O surpreendente é que 82 alunos, cujas almas estão vestidas de paletó e gravata, votaram a favor da norma. O sociólogo Anibal Quijano chama isso de colonialidade, que é a matriz da dominação colonial. O colonialismo acabou, mas a colonialidade continua impregnada nas entranhas dos colonizados mentais.
O outro Rafa, presidente do Centro Acadêmico de Direito que foi fundado em 1934, encaminhou ofício ao Conselho Departamental sugerindo que acate o resultado do plebiscito. Ele escreveu para a coluna, lembrando que a publicidade dos fatos pode influenciar, ainda que indiretamente, os membros do Conselho a atenderem o anseio dos alunos. Já foi escolhido até um relator para a questão, mas ela só entra na pauta no próximo ano.
“Enquanto não se julga o caso, alunos são postos para fora de sala porque estavam usando bermudas e a norma, absurdamente, permite que se abra um processo disciplinar contra o aluno de bermuda e o professor que o deixar assistir aula. Grande absurdo!” – escreve Rafael Frank Benzecry.
Com ele parece concordar o eminente e preclaro jurista Orozimbo Nonato, que em sua última aula de Direito Civil na Faculdade de Direito de Minas Gerais, em 1940, foi confrontado por um aluno sem paletó que queria assistir aula. O momento era tão difícil que Orozimbo Nonato, que só falava em latinorum, declarou: “Hic culum cotiae sibilare”, ou em português popular, “aqui é que o fiofó da cutia assovia“. Foi aí que depois de escrever o projeto do Código Civil, ele considerou nula a norma do paletó em sua conhecida tese “Da coação como defeito do ato jurídico”.
Toda a solidariedade aos Rafas de todos os tempos e aos alunos de Direito contra o FELASAM – o Festival da Leseira que Assola o Amazonas. Abaixo o paletó, abaixo a colonialidade, viva o decote, viva a bermuda!
P.S. A Bermuda do Rafa –  http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=311
Orozimbo e o juiz furunfado –   http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=182