MEU PAI É UMA FOTOGRAFIA

Por Ribamar Bessa:

Father – It’s not time to make a change/Just relax,take it easy/ You’re stil young.

 

Son – Now there’s a way and I know / that I have to go away / I know I have to go.
(Cat Stevens – Father & Son)
A relação pai x filho, tensa e amorosa, é tema recorrente da literatura, da psicologia e até do cancioneiro popular. Cat Stevens compôs Father & Son que reproduz diálogo do eterno conflito entre um jovem e seu pai e canta a ruptura do “cordão umbilical” dolorosa para ambos. A voz do cantor inglês, grave e controlada quando interpreta o pai, se transforma em aguda e vibrante quando quem canta é o filho. Tenho ainda hoje o disco de vinil Tea for the Tillerman quase perfurado de tanto rodar. Existe bela versão em português de Renato Teixeira com seu filho Chico.
Na literatura espanhola, há o conhecido poema de Jorge Manrique, uma elegia funerária escrita em 1476 quando seu pai Rodrigo morreu: Coplas por la muerte de su padre. Discorre sobre a vida, o sucesso, a riqueza e o descanso final, concluindo no canto XXXVIII com o pai agonizante, mas que aceita heroicamente o seu destino: “E consinto eu em morrer, com vontade prazerosa, clara e pura, que querer homem viver, quando Deus quer que morra, é loucura”.
Agora, em Manaus, Eduardo Freire Nakamura, que não pertence ao campo da literatura, escreve sobre a morte do pai. Ele é engenheiro, doutor em ciências da computação, professor das disciplinas Análise de Algoritmos e Cálculo Numérico na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), além de pesquisador em vários projetos, entre os quais um na área de conservação e monitoramento ambiental, que usou sensores sem fio em armadilhas fotográficas destinadas a monitorar e catalogar espécies animais na floresta amazônica.
Eduardo compartilhou com seu pai George Nakamura, nipo-americano, a paixão pela fotografia. Exorcizou sua dor e seu amor, escrevendo. Nem sempre a qualidade literária de um texto corresponde à intensidade da nossa agonia ou do nosso afeto. Quando isso acontece, como é o caso, vale a penar compartilhá-lo. Só um amor tão profundo e o domínio acabado da palavra podem gerar uma escrita como a que vai abaixo.
TEXTO DE EDUARDO
Em minhas aulas de matemática discreta, costumo citar a relação pai-filho como um exemplo de relação de um-para-muitos: um pai para um ou mais filhos. Refletindo agora, vejo que não podia estar mais errado.
Sim, em sua essência, um pai possui um ou mais filhos. Sim, em sua essência, o amor oferecido pelo pai aos filhos é o mesmo. Contudo, a apresentação deste amor e sua internalização dependem da individualidade do par relacionado. A relação entre duas pessoas é experiência particular e única. Esse relacionamento depende da personalidade e da história a cada um.
Embora o relacionamento pai-filho seja “matematicamente” de um-para-muitos, ele é, na essência humana, um relacionamento de um-para-um. Um único pai para um único filho, ou um pai para cada filho. As mesmas experiências, o mesmo afeto, o carinho idêntico dado a dois filhos distintos, constituem experiências singulares e únicas. Portanto, meu pai é o pai de meus irmãos e, ao mesmo tempo, o meu pai não é o pai dos meus irmãos.
Então quem é “o Meu Pai”?
O Meu Pai é o George para o Eduardo, o George pelo Eduardo.
Tivemos 38 anos e seis meses juntos de história. Para ele, essa história teve início aos 47 anos. Antes disso, sua vida já não cabia em 47 anos. Uma vida fantástica, menino pobre, agricultor, confinado em campo de concentração, soldado paraquedista, desenhista, seminarista, padre, cozinheiro, professor, tradutor, empresário, marido, pai de meu irmão mais velho… uma pequena amostra destes 47 anos que antecederam meu nascimento.
Mas como posso descrever o Meu Pai? Não o George Nakamura, mas o Meu Pai, aquele que nasceu junto comigo em 13 de fevereiro de 1976? Qualquer descrição seria imperfeita e incompleta. Mas para efeitos didáticos vou lançar mão de uma metáfora que, mesmo limitada, espero ilustrar um pouco do “Meu Pai”.
Meu Pai é uma fotografia, mas não uma fotografia qualquer.
Meu Pai é a fotografia que todo fotógrafo sonha em tirar. Não uma foto cujo foco é a técnica ou a estética, mas daquelas fotos que contam, ou melhor, proclamam ricas histórias no mais alto volume.
Meu Pai é daquelas fotos espontâneas que vemos com o coração e não com os olhos. Daquelas fotos que nos fazem rir, chorar, que nos fazem sentir, que nos fazem saber que estamos vivos, que nos mostram que somos humanos.
Meu Pai é daquelas fotos que revisitamos indefinidamente sem nunca cansar, que a cada visita descobrimos algo novo, vivemos algo novo. Daquelas fotos que de alguma forma mudam a nossa vida. Daquelas fotos que depois de contempla-las nos tornamos outra pessoa, nos tornamos mais sábios ou mais ignorantes, mais fortes ou mais frágeis, mais conscientes ou mais irracionais, mais criança ou mais adultos. Enfim, mais humanos.
Meu Pai é daquelas fotos que permanecem gravadas eternamente em nossas mentes, mesmo após fechar os olhos. Daquelas fotos para se ver em todos os tamanhos, em todas as paredes. Daquelas fotos que abraçamos e suspiramos. Daquelas fotos preto-e-branco que as cores brotam instantaneamente em nossas retinas. Foto estática, mas tão dinâmica que atravessa os tempos mantendo-se sempre atual. Daquelas fotos que revolucionam, que inspiram novos fotógrafos, que geram discussões, estudos e teorias.
Meu Pai é daquelas fotos cantadas e recitadas. Daquelas fotos com cores da Primavera, texturas do Céu, sabores da Terra, calor do Sol, som do Mar e cheiro de Casa.
Meu Pai é uma foto que ao vê-la, nos obriga a buscar, não a perfeição, mas o nosso melhor. Neste sentido, uma foto exigente a ponto de nos causar inquietação em momentos de fraqueza. Ao mesmo tempo, uma foto que incentiva e acredita no potencial de quem a está contemplando.
Meu pai é uma foto com alma. Uma alma que cresceu dia após dia. Que aos 85 anos tornou-se tão grande que não coube no seu corpo e extrapolou os limites impostos por este corpo, uma moldura castigada pelo tempo, mas que nunca diminui a beleza da imagem enquadrada.
Sim, esta foto passou 38 anos em minha parede, me modificou e me moldou todos os dias. Sou feliz e agradecido pelos anos que tive esta foto em minha casa. Não está mais na minha parede, mas impressa em meu coração, com carinho e amor, abençoando minha vida e de minha família.
Tenho certeza que todos que o conhecemos temos essa foto em nossos corações. Que continuemos então honrando esta fotografia com quem tivemos a graça de conhecer e conviver.

Uma fotografia que fez deste, um mundo melhor.

Eduardo Nakamura.

P.S.- Para entender a saga dos japoneses nos Estados Unidos, é recomendável a leitura do romance da nipo-americana Julie Otsuka – O BUDA NO SÓTÃO. Não li ainda, mas neste sábado (13/09) há uma resenha de Alcir Pécora na Folha de São Paulo que é um convite irrecusável à leitura. Segundo Pécora, que leu para nós, o livro conta as duras condições de trabalho dos japoneses nos Estados Unidos e o convivio subalterno com os gringos, que se acirrou com a Segunda Guerra, quando os imigrantes e seus filhos passaram a ser vistos com desconfiança, histeria e paranóia. É quando o presidente Roosevelt criou os campos de concentração,aos quais se refere Eduardo Nakamura, onde são confinados norte-americanos de origem japonesa. Uma mancha a mais na história da Memérica.