A VIA SACRA DOS INDIOS

Por Ribamar Bessa:

A Semana do Índio celebrada nas escolas do Brasil coincidiu este ano com a Semana Santa, quando o mundo cristão rememora a paixão e morte de Cristo. Em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, a II Bienal Brasil do Livro e da Leitura programou no sábado de aleluia, Dia do Índio, o seminário Narrativas Contemporâneas da História do Brasil. Numa das mesas, no Auditório Jorge Amado, a índia Fernanda Kaingang, advogada com mestrado em Direito Público, debate as desigualdades sociais no Brasil com Muniz Sodré, Afonso Celso e este locutor que vos fala.

Qual é o índio celebrado cada ano, em abril, que emerge nas narrativas da história do Brasil? O índio de Pero Vaz de Caminha que permanece no imaginário dos brasileiros? Aquele escravizado pelos bandeirantes ou o catequizado pelos missionários? O índio da senadora Kátia Abreu e do agronegócio “obstáculo ao progresso”? Ou o das descrições etnográficas dos antropólogos, que nos ensina que outro mundo é possível? O “índio atrasado” ou o que acumulou sofisticados saberes? A vítima do colonialismo ou o combatente que resistiu?

Afinal, qual o pedaço de nós que comemoramos no Dia do Índio? Ou ele não é parte de nós? No século XVI, na polêmica com o advogado Sepúlveda, Bartolomeu De Las Casas afirmou que durante todo o período colonial milhares de Cristos foram crucificados na América, sem a esperança da ressurreição. Testemunha da dor, do sofrimento e da resistência dos índios, Las Casas descreve o trajeto seguido por eles carregando a cruz numa via sacra dolorosa, que vai do Pretório Ibérico até o Calvário, de 1492 aos dias atuais.
As Estações
Logo na 1ª Estação, o índio é condenado à morte. Colombo e Cabral que aqui desembarcam com a cruz, perguntam às Coroas Ibéricas: “O que faço com o índio?” Aqueles que querem se apropriar das terras indígenas gritam: “Que o crucifiquem”. Os reis lavam as mãos e através de leis e ordenações do Reino, entregam o índio aos seus súditos.
Despojado de suas terras, escravizado, na 2ª Estação, o índio começa a carregar a cruz às costas, num processo que não terminou. Las Casas registra a invasão das aldeias, o massacre e a prisão dos índios nas chamadas ‘guerras justas’: “Oh! Grande Deus e Senhor, como podiam ser escravizados de ‘forma justa’ estando em suas próprias terras e em suas casas sem fazer mal a ninguém?”.
Na 3ª Estação, o índio cai pela primeira vez, numa jornada de trabalho que dura até 18 horas diárias, segundo Las Casas que detalha o recrutamento de menores e mulheres gestantes, os acidentes de trabalho, os castigos físicos, as doenças, a alimentação insuficiente: “E até mesmo as bestas costumam ter um tempinho de liberdade para pastarem no campo e os nossos espanhóis nem sequer isto concediam aos índios”.
O encontro com a Mãe acontece na 4ª Estação. A Mãe Terra, que dá vida aos seres do universo, símbolo da fecundidade e da biodiversidade, tem sua alma transpassada por uma espada. Matas devastadas, minas escavadas em busca de metais preciosos, rios poluídos, animais, plantas e gente exterminados: a Mãe Terra é ferida de morte. Acontece a maior catástrofe demográfica da histórica da humanidade: nunca um continente foi esvaziado tão rapidamente como a América, escrevem os demógrafos da Escola de Berkeley.
A cruz pesa em demasia. Na 5ª Estação, os soldados obrigam Simão de Cirene, do Norte da África, a ajudar a carregar a cruz, ao lado do Negro oriundo do mesmo continente. Com o rosto ensanguentado, sujo, cansado e cheio de escarros, na 6ª Estação o índio espera que apareça uma Verônica para enxugá-lo, para deixar a imagem da coroa de espinhos gravada no lenço. Em vão. Como no poema “Los dados eternos”, de César Vallejo, vem a justificativa: “Tu no tienes Marias que se ván“.
Eliminar da História
Na 7ª Estação o índio, esgotado, cai pela segunda vez, depois das novas investidas dos bandeirantes, cujo modus operandi é descrito por Raposo Tavares em depoimento ao padre Vieira “Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a viagem”.
As mulheres de Belém estavam na 8ª Estação, ao lado de Maria Quitéria de Jesus, a baiana heroína da Guerra da Independência, que depois recebeu o título de Patrona dos Oficiais do Exército Brasileiro. No encontro com o índio, as mulheres paraenses e até Maria Quitéria, embora sendo de Jesus, não choraram por ele, mas por elas mesmas e por seus filhos.
Na 9ª Estação, a terceira queda sob o peso da cruz ocorre, quando Paulo de Frontin, presidente da Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, no seu discurso oficial de abertura, declara:
“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
As cinco últimas estações da via sacra, a caminho do Calvário, se localizam já no Brasil republicano. O índio despojado de sua língua, de seus saberes, é definitivamente eliminado das narrativas sobre a história do Brasil.
Na 10ª Estação, o índio é esbofeteado na comemoração do 5° Centenário, em 2000, quando o então Ministro da Cultura, Francisco Weffort, depois de fazer uma apologia dos bandeirantes, propõe a criação do Museu Aberto do Descobrimento, incompatível com a historiografia crítica e com o projeto intelectual de renovação da cultura brasileira, numa vitória inequívoca do obscurantismo intelectual.
Anos depois, já como ex-ministro, Weffort publica o livro “Espada, Cobiça e Fé – As Origens do Brasil”.  No desenho que faz do nosso país, ele justifica o calvário dos índios, afirmando que os bandeirantes faziam “parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais. (…) Sei que os bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los”.
Diakui Abreu
Na 11ª Estação, o índio é ferido de morte pelo escárnio da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO, viche, viche) em artigo no Caderno Mercado da Folha de São Paulo – Cidadania, e não apito. Presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), ela repete pela milésima vez que o calvário dos índios se deve ao “difícil acesso à saúde e não à falta de terra“, fingindo não ver a relação entre uma e outra. Admite, no entanto, que “se o problema consiste em terra, que sejam compradas a preço de mercado” pelo Estado brasileiro “com seus próprios meios que são os impostos extraídos de toda a populaçao brasileira“.
Na 12 ª Estação, ela tenta convencer o índio agonizante que gosta dele e, por isso, “minha homenagem pessoal aos povos indígenas fiz a cada nascimento de meus filhos que não por acaso se chamam Irajá, Iratã e Iana”. Além das terras, a senadora se apropria também dos nomes indígenas. Anunciará qualquer dia, no Caderno Mercado, que vai ao Cartório mudar de Kátia para Diakui Abreu.
Na 13ª Estação, o deputado federal Osmar Seraglio (PMDB – PR, viche, viche), relator da Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 215 – enfia uma lança no ventre do índio ao justificar, em artigo na FSP (19/04/14) que o poder de demarcar terras indígenas deve ser transferido do Executivo para o Congresso Nacional, atendendo os interesses da bancada ruralista, que torna inviável qualquer processo de demarcação.
O protagonista da 14ª e última estação é o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP- RS, viche, viche). Ele apoia a Portaria do Ministério da Justiça que, antes mesmo da aprovação da PEC 215, já permite a ingerência dos ruralistas nos estudos sobre demarcação de terras indígenas. Na audiência realizada no município de Vicente Dutra (RS), Heinze afirma que “índios, quilombolas, gays e lésbicas são tudo o que não presta”.
A partir daqui, a via sacra continua,desdobrando a agonia lenta e inexorável em outras estações, colocando em dúvida se um dia haverá ressurreição.