O COLECIONADOR DE HISTÓRIAS

Por Ribamar Bessa:
Quem gostava de contar essa história saborosa, lá no Canto do Fuxico, era um sábio amazonense, o etnólogo Geraldo Macedo Pinheiro (1920-1996). Ele não contou para mim, mas para seu filho, herdeiro de seu nome, que me relatou e eu, agora, a repasso para ti, desocupado (a) leitor (a). Faz dela o que bem entenderes. Se quiseres, conta a teus filhos e netos. O fato aconteceu mesmo, de verdade, embora entre o acontecido e o narrado a gente introduza sempre os enfeites de praxe.
O cenário é um restaurante chique de Manaus, na década de 1950, ali na Eduardo Ribeiro, em prédio já demolido para sediar agência bancária. Esse foi o palco da ação vivida por nosso herói.Zeloso funcionário do Ministério da Agricultura e veterinário de profissão, ele viajou por toda a Amazônia e se embrenhou na floresta para estudar a fauna e a flora aquática. Aprendeu com os índios que gente e bicho, por quem era fascinado, faziam parte de um mesmo conjunto, eram todos seres vivos, igualmente dignos de respeito e carinho, especialmente, mas não exclusivamente, o bicho-mulher.
Deixa-me que o apresente sem mais delongas. Seu nome é Manuel Nunes Pereira (1892-1985), nasceu no Maranhão e incorporava – como ele mesmo dizia – a síntese do povo brasileiro, pois “tinha os cabelos de português, a cara e alma de índio e a pele mulata herdada da mãe”. Na convivência com os índios, ele – que já era enólogo desde sempre – se tornou um respeitado etnólogo, reconhecido nacional e internacionalmente.
Sabia ouvir. Mais do que isso, sabia escutar os índios e decifrar os mistérios dos seus mitos. Em suas andanças pelas aldeias, colecionou inúmeras histórias, sagradas algumas, profanas outras, eróticas, libidinosas e cômicas quase todas, onde os heróis civilizadores desmoralizam o sentido da narrativa trazida por missionários. Publicou livros, entre os quais “Moronguetá: um Decameron indígena“, classificado pelo poeta Thiago de Mello como “livro romântico, heróico, fescenino, sarcástico, burlesco, lírico e obsceno“. Enfim, livro sacana, no bom sentido, é claro.
Mina de ouro
Eis que, depois da II Guerra, no final dos anos 1940, quando não existiam instituições financiadoras de pesquisas, Nunes Pereira queria prospectar uma mina-de-ouro: as narrativas dos índios Sateré-Mawé, que tinham o poder de hipnotizá-lo. Sem recursos para a viagem e estadia nas aldeias, apresentou um projeto à vetusta Associação Comercial do Amazonas (ACA), em cuja diretoria tinha amigos. Eles aprovaram o projeto só mesmo em nome da amizade, já que não tinham qualquer interesse pelo tema, o negócio deles era apenas com o vil metal, o único ouro que buscavam.
A ACA liberou a grana, que para eles era uma merreca. Lá vai Nunes Pereira para o rio Madeira em busca da palavra encantada. Passa uma longa temporada e, tempos depois, volta com o texto pronto do seu livro “Os índios Maués”, mas antes de publicá-lo, o que só aconteceria em 1954, queria apresentá-lo à entidade financiadora. Para isso, pediu uma reunião. Os patrocinadores da pesquisa, que estavam se lixando para os índios e suas narrativas, desconversaram. Solicitou duas, três, dez vezes. Nada.
Uma bela manhã, cansado de esperar, Nunes Pereira, com uma pasta de papéis sob o braço, entrou no Bar e Restaurante Avenida. Sentou numa de suas mesinhas redondas, de ferro, com tampa de vidro. Tomou umas e outras doses de cocal, a cachaça local. Quando o relógio da Matriz deu as doze badaladas, ele saiu, sentou numa das cinco cadeiras de engraxate que ficavam ao lado da entrada do bar, pediu um brilho no seu sapato e, enquanto isso acontecia, teve uma ideia luminosa.
– Se vocês fizerem o que eu pedir, pago o almoço de todo mundo – propôs ele aos cinco engraxates que tinham entre 10 e 12 anos.
O assassinato de um dos engraxates que abalou Manaus não havia ainda ocorrido, inexistindo portanto o provérbio “quem tem tu, tem medo, cuidado com o Figueiredo”. Diante da entusiasmada resposta afirmativa dos meninos, Nunes Pereira os convidou a entrar no restaurante, em cujo banheiro se lavaram. Ocuparam mesa com seis lugares sob olhares curiosos de outros clientes. Nunes encomendou um baião-de-dois com jaraqui frito para todos – que manjar! – e, de sobremesa, um sorvete de cupuaçu, especialidade da casa.
– Como é teu nome? – perguntou Nunes Pereira se dirigindo ao primeiro menino, já sentado.
– Orlando Pirulito – respondeu o garoto.
– Esquece. Durante este almoço, você vai ser Aluízio Benzecry, presidente da ACA. Como é teu nome? – testou Nunes Pereira.
– Aluízio Benzecry, presidente da ACA.
Fez isso com cada um, compondo toda a diretoria da Associação. Luiz-mal-de-vida passou a ser Jayme Benoliel, vice-presidente; Francisco Dá-o-toba se transfigurou em Phelippe Bittencurt, o tesoureiro. A secretaria geral ficou com Severino Santo-Pobre agora com o nome de Armindo Levy e o Conselho Fiscal com Mário Trezentos, transformado no doutor Wilson Baptista de Sales.
Enquanto os engraxates comiam, com suas imagens refletidas nos espelhos de cristal do restaurante, os demais comensais, atônitos, viram Nunes Pereira se levantar, tirar os papéis da pasta, ficar de pé e começar a ler:
– Senhores membros da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas, faço leitura do meu relatório sobre o trabalho de campo realizado com os Sateré-Mawé com financiamento desta instituição…
O discurso durou mais de uma hora. De vez em quando, um dos membros da diretoria aprovava balançando a cabeça. Nunes concluiu informando sobre os procedimentos realizados na coleta das histórias:
– Gostaria de vos falar sobre meu método de trabalho. Quando eu ouvia as historias dos índios, escutava, sem interromper, os narradores e pedia que falassem lentamente, porque ia anotando – se falassem em língua geral – as frases dos vocábulos mais expressivos. Não dispondo de um gravador, lamento não ter registrado certas vozes, gritos, assovios dos personagens das histórias, fossem eles animais ou seres humanos. Não pude reter as mímicas, os gestos, a contração dos lábios e o cerrar de pálpebras dos narradores.
A leitura foi seguida atentamente por Giovani Meneghini, o seu João, que havia acabado de comprar o restaurante em dezembro de 1952.  Depois que os engraxates liquidaram a sobremesa, Nunes Pereira concluiu sua fala.
– Os senhores diretores da ACA gostaram? – perguntou, de forma ambígua, porque se referia ao relatório e a resposta apontou em outra direção:
– Sim – responderam os membros da diretoria, aprovando o sabor do jaraqui frito e o cheiro do cupuaçu.
– Considero, então, aprovado meu relatório – disse Nunes Pereira, depois de, solenemente, prestar contas à sociedade que havia financiado sua pesquisa. Quando foi pagar a conta, dona Adelina Meneghini, no Caixa, não aceitou: o almoço era cortesia do Bar e Restaurante Avenida. O restaurante inteiro aplaudiu. Lá fora, com ajuda da graxa, Nunes Pereira tomou as impressões digitais de toda a diretoria da ACA, carimbando com elas a última página do relatório. Estava sacramentado.
Na xereca da baleia
Zombeteiro, gozador, bufão, intelectual e boêmio, Nunes Pereira mereceu a atenção do pesquisador Harald Pinheiro que nesta quinta-feira defendeu na PUC de São Paulo tese de doutorado em Ciências Sociais, onde analisa tanto as obras de Nunes Pereira como as de outro colecionador de histórias, o botânico João Barbosa Rodrigues. Além disso, Harald define o perfil do nosso herói num depoimento pessoal:
“Lascivo e libidinoso, contava histórias surpreendentes e engraçadas, na roda de amigos e admiradores nos bares em que frequentava. Quando eu era ainda adolescente frequentei uma dessas rodas de narrativas encantadas (acompanhando meu pai) e me fascinei com estranha história narrada por Nunes Pereira com seriedade e volúpia, depois de posar para uma foto na genitália de uma baleia. Há quem afirme ser verídica e, inclusive, ter visto a foto, mas até hoje ela ecoa em minha imaginação com verossimilhança e mistério, acompanhada por atmosfera de curiosidade erótica e profundo encantamento etnopoético”.
A banca aprovou a tese com nota dez e recomendou sua publicação. Nela, o novo doutor, Harald Sá Peixoto Pinheiro, analisa a dimensão estética e dá visibilidade à poesia das narrativas indígenas registradas por Nunes Pereira. Dedicou-a a seu pai Geraldo Macedo Pinheiro, a quem homenageamos. “Narrar é fazer pensar e fazer sentir que o passado não morreu” nos diz Walter Benjamin citado na tese. Se isto é certo, trata-se de doce vingança: cinco filhos doutores de Geraldo Pinheiro estão escrevendo aquilo que foi pensado pelo pai que, desta forma, permanece entre nós.
P.S.1 Amazonenses da capital e do interior e do estado, meus companheiros e companheiras dê lutas e dê ideais, não deixem de ler: Harald Sá Peixoto Pinheiro: “Mitopoética dos muiraquitãs, porandubas e moronguetás: ensaios de Etnopoesia Amazônica”. Complementem com a tese defendida na mesma PUC por Selda Vale da Costa, em 1997, “Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas”.
P.S. 2 – Da banca de Harald fizeram parte Edgard de Assis Carvalho (orientador), Lucia Helena Vitalli Rangel, Edimilson Felipe da Silva, Iraildes Caldas Torres e este locutor que vos fala. Além de Geraldo Macedo Pinheiro, lembramos a antropóloga Carmen Junqueira, ainda hoje na ativa, que foi professora de todos nós presentes naquela sala e, em 1977, incendiou corações e mentes no curso de antropologia amazônica que ministrou em Manaus. O referido é verdade e dou fé.