MANACY E A PORCARIA DA AGU

Por Ribamar Bessa:
Ato contra a Portaria na AGU de Rio Branco
O que é AGU? Levanta a mão aí quem sabe! A curiosidade aumentou depois que a AGU publicou, no dia 17 de julho, a Portaria 303/2012, dispondo sobre as terras indígenas, o que provocou o maior rebucetê, com reação contrária de índios, antropólogos, ambientalistas, juristas, movimentos sociais e até de setores do próprio governo. A mídia se fechou num silêncio cúmplice, mas não conseguiu abafar o protesto feito com estardalhaço e indignação nas redes sociais.
– “A Agu endoidou de vez” – escreveu uma internauta, sem entender de onde havia saído a tal Portaria. Afinal, quem é AGU no jogo do bicho? Qual o poder que tem para prejudicar os índios?
No Rio Negro (AM), todo mundo conhece as histórias inacreditáveis protagonizadas pela Agu, uma velha preguiçosa e vadia, que nunca fez roça e viveu sempre às custas dos outros, colhendo o que não plantou. Por isso, Manicy – a Mãe da Mandioca – castigou a velha, transformando-a em aguti, que é o nome da cutia em língua geral. Desde então, a velha deixou de ser gente e virou bicho, mas mesmo assim não perdeu o vício. Continua invadindo e saqueando as plantações, das quais é um dos piores inimigos.
Os estragos que este roedor, de hábitos noturnos, faz nos roçados, com suas unhas cortantes e seus dentes afiados, levaram os índios a criar  o ditado da cutia:
– O  sol foi embora / findou o dia / a noite é a hora / da velha vadia.
As histórias dos estragos feitos pela velha Agu, incorporada na cutia, são contadas nas malocas dos rios Vaupés e Tiquié. Algumas versões foram recolhidas pelo conde italiano Ermano Stradelli, que viveu 47 anos no Amazonas, onde aprendeu a língua geral – o nheengatu, e coletou mitos indígenas. Ele publicou, em 1929, o seu Vocabulário Nheengatu-Portuguez, em cujo verbete Acuty ou Aguti (p.361-362) aparece a versão aqui apresentada.
A Portaria
Mas quem ameaça estragar agora o roçado dos índios é outra AGU, a Advocacia-Geral da União. Seu chefe, Luís Inácio Lucena Adams, cujo status é de Ministro de Estado, assinou portaria determinando que o governo pode fazer nas terras indígenas aquilo que a cutia faz nos roçados: os estragos que quiser, sem necessidade de consultar as comunidades envolvidas ou sequer a própria Funai. Dessa forma, os índios passam a ser inquilinos em sua própria terra, que virou casa da sogra ou da mãe-joana.
A reação veio rápida. As redes sociais e as aldeias indígenas fervilharam com mensagens e notas de protesto. A indignação foi tão grande que um internauta, desesperado, manifestou que se a portaria não for revogada é o caso de fazer o que a presidente Dilma fez no combate à ditadura: pegar em armas. Os caciques, as lideranças e as organizações indígenas foram unânimes no repúdio à Portaria. Os aliados, alarmados, também se pronunciaram.
A Rede de Cooperação Alternativa, que congrega dez organizações, considerou a portaria “um retrocesso na garantia dos direitos indígenas”, um ato “inadmissível e escandaloso” que fere a Constituição de 1988 e os acordos internacionais assinados pelo Brasil. Solicitou à presidente Dilma que determine a imediata revogação da Portaria e recomende à AGU “que aguarde a manifestação da Suprema Corte do país“.
O Conselho Indigenista Missionário classificou a portaria como “excrescência jurídica“, danosa para os índios, “muitos deles morando em acampamentos na beira de estradas ou em reservas superlotadas, enquanto esperam que suas terras ancestrais sejam demarcadas“.
A própria Funai manifestou seu desacordo, considerando que a portaria aumenta a insegurança jurídica e coloca em risco os direitos garantidos constitucionalmente às comunidades indígenas. Em comunicado à imprensa, a Funai confirmou contatos com o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, que aceitou suspender a vigência da portaria até que sejam ouvidos os povos indígenas em audiência pública.
Suspender não é suficiente: a COIAB exige a imediata revogação da Portaria 303 da AGU – reivindicou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, apoiada no parecer de juristas e no descontentamento dos índios.
Um dos juristas, Dalmo Dallari, argumentou que a portaria da AGU “contém evidentes inconstitucionalidades e ilegalidades“,  pois “pretende revogar dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de afrontar disposições legais“. Ele considerou que o advogado-geral da União não tem competência para fazer o que fez, querendo mudar a Constituição ou impor sua interpretação a quem não é seu subordinado, o que significa exorbitar de suas funções.
A cutia globalizada
Afinal, quais são mesmo as funções da AGU? A Advocacia-Geral da União foi criada em 1993 para defender o Estado e representá-lo judicial e extrajudicialmente. Seu chefe, nomeado pelo Presidente da República, comanda uma instituição encarregada de defender os interesses da União e de prestar consultoria e assessoramento jurídico ao poder executivo. Resta saber o que é que a nação brasileira ganha com uma portaria que pretende prejudicar quase um milhão de índios?
Os interesses nacionais não conflitam com os interesses dos índios. Ao contrário, o que é bom para os índios é bom para o Brasil. A diversidade cultural e linguística deve ser mantida para o bem de nossos filhos, de nossos netos e de toda a sociedade brasileira. Por isso, a Constituição de 1988 garantiu aos índios o direito à terra, sem o qual a diversidade deixa de existir. Por que, então, uma controvertida portaria ataca, como a cutia, o roçado dos índios? Parece que tem caroço debaixo dessa AGU.
E tem mesmo. Basta verificar como é que a tal Portaria foi cozinhada. Foi assim: a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e a Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (FAMASUL) vêm pressionando a AGU há muito tempo. Em novembro do ano passado, encaminharam um documento, cobrando da AGU “uma norma definitiva e específica sobre a demarcação de terras indígenas em todo o país”.
Os senadores Waldemir Moka (PMDB/MS – vixe, vixe) e Kátia Abreu (PSD/TO – vixe,vixe), acompanhados de outros dez senadores e de representantes da bancada ruralista se reuniram com o advogado-geral da União para discutir a possibilidade de o Governo Federal produzir a tal Portaria. A senadora Kátia, que é presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), declarou naquela ocasião aos jornais:
– “O Moka e eu queremos que a AGU oriente os órgãos da União como proceder sobre essa questão. Acreditamos que vamos ter sucesso”.
Tiveram. Se o Moka quer, se a Kátia Abreu também, a AGU entendeu como uma ordem. Foi aí, das unhas cortantes e dos dentes afiados da cutia que surgiu a Portaria, contaminada de impropriedades técnicas, causando um vexame no mundo jurídico, o que talvez pudesse ter sido evitado se fosse consultado o Centro de Estudos Victor Nunes Leal (CEVNL), órgão responsável pelo aperfeiçoamento profissional dos membros da AGU, que teria advertido sobre o desacordo da Portaria com a Lei e a Constituição.
– A Portaria nº 303/2012 da Advocacia Geral da União não tem validade jurídica, e qualquer tentativa de lhe dar aplicação poderá e deverá ser bloqueada por via da ação judicial própria, a fim de que prevaleça a supremacia jurídica da Constituição, respeitados os direitos que ela assegurou aos índios brasileiros  – escreveu Dalmo Dallari.
Quem se beneficia com a tal Portaria? A nação perde, os índios perdem. Quem, então, ganha? Ela, a cutia. Podem verificar: onde tem terra indígena, tem o agronegócio – essa cutia globalizada – querendo invadir o roçado. É que os ruralistas confundem os lucros do agronegócio, que é privado e particular, com os interesses da nação brasileira. Eles são, apenas, uma pequena parte de uma totalidade, mas ignoram as outras partes e se consideram como se fossem o todo. Quando aumenta o lucro deles, “é o Brasil que se desenvolve”. Quando diminui, “é o Brasil que está em crise”, não importa o que está acontecendo com os outros segmentos.
O Brasil é o agronegócio, que a AGU, pagando o maior mico, resolveu defender. A cutia,rondando o roçado, está assoviando:
– O  sol foi embora / findou o dia / a noite é a hora / de baixar Portaria.
P.S. As organizações que protestaram foram, entre outras: Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Conselho Indígena de Roraima (CIR), Comissão Terra Guarani (CTG), Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ e a Rede de Cooperação Alternativa (RCA) que congrega as seguintes entidades: Instituto Sociambiental (ISA), Associação Terra Indígena Xingu – Atix, Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do MA e TO, Centro de Trabalho Indigenista – CTI, Comissão Pró-Índio do Acre – CPI-AC, Conselho das Aldeias Wajãpi -Apina, Hutukara Associação Yanomami – HAY,  Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé e Organização dos Professores Indígenas do Acre – Opiac.
(*) Professor, escritor e jornalista.